Thursday, December 14, 2006

A Lula e a Baleia
















A LULA E A BALEIA - ("The Squid and the Whale"). Direção: Noah Baumbach. Produção: Wes Anderson (de Os Excêntricos Tenenbaums). Com: Jeff Daniels, Laura Linney, Anna Paquin, William Baldwin.

Inspirado nos europeus, filme escapa do sentimentalismo

THIAGO STIVALETTI

Fonte: Folha de São Paulo, 17/04/2006

Em uma cena de "A Lula e a Baleia", Bernard Berkman, o professor vivido por Jeff Daniels, encena para a mulher, Joan (Laura Linney), o final trágico e inesperado de Jean-Paul Belmondo em "Acossado" (1959), de Godard. Essa e outras referências indicam que estamos num tipo raro de filme americano, de um diretor que conhece a vanguarda do cinema europeu dos anos 60.

O diretor Noah Baumbach é co-roteirista de "A Vida Marinha de Steve Zissou", de Wes Anderson, e, como ele, investe numa abordagem original, num estranhamento que foge das regras convencionais do grande cinema para construir um drama familiar enriquecido com pitadas de sarcasmo. Baumbach pega uma história aparentemente banal, inspirada em sua própria infância: um casal decide se separar, e os dois filhos, Walt, 16, e Frank, 12, tentam reconstruir suas identidades depois que suas vidas são viradas de cabeça para baixo, com um revezamento frenético entre a casa do pai e da mãe, confissões inesperadas dos motivos da separação e o novo comportamento que os pais adotam, namorando ou flertando com pessoas mais jovens.

É aí que as referências ao cinema europeu mostram não ser gratuitas. Como Godard e os demais cineastas da nouvelle vague, Baumbach busca uma abordagem mais racional, despida de sentimentalismos que aproximem seu filme do melodrama. Os embates entre os integrantes da família e aqueles que os circundam são inesperados e muitas vezes ríspidos. As coisas nunca terminam onde deveriam terminar.

Walt e Frank não são vítimas indefesas da crueldade e da indiferença de pais egocêntricos. Os pais se importam, querem minimizar os problemas dos filhos, mas eles vão se virar como podem e reagir de maneiras inesperadas. O desfecho aberto remete a "A Doce Vida", de Fellini, e à incapacidade de seus personagens de se compreender por completo e de buscar um sentido lógico para vidas que transcorrem em meio ao caos humano.

"A Lula e a Baleia" é um filme que exige abertura de espírito e uma disposição para brincar com os gêneros. Ganhou três indicações ao Globo de Ouro: filme comédia, ator e atriz. O Oscar, afeito ao conservadorismo e aos gêneros rígidos, só reservou-lhe uma indicação a roteiro original.

Saturday, December 09, 2006

Terra de Ninguém







TERRA DE NINGUÉM (Badlands, 1973), de Terrence Malick, com Sissy Spacek, Martin Sheen, Warren Oates.

ANDRÉ SETARO (exclusivo para a Casa de Cinema)

Cineasta bissexto, Terrence Malick, o diretor de Terra de Ninguém (Badlands), realizou, em quase quatro décadas, apenas três filmes: este de estréia, em 1973, o aclamado Cinzas no Paraíso (Days of heaven), que no lançamento do DVD virou Dias no Paraíso, em 1978, e desapareceu, para ressurgir, redivivo, vinte anos depois, em 1998, em Atrás da linha vermelha (The thin red line). Caso raro na história do cinema, um realizador tão interrompido, de imensos hiatos entre um filme e outro, principalmente a se considerar um cineasta da envergadura de Malick, que possui aquilo que François Truffaut tanto prezava num diretor de cinema: visão de mundo e estilo particular, uma maneira própria de expressão pelas imagens em movimento.

A sua obra-prima continua sendo Days of heaven, mas Terra de Ninguém já aponta para um cineasta maduro, com domínio formal de seus recursos expressivos e um olhar abrangente sobre a chamada América Profunda. É um filme, Terra de Ninguém, que faz parte de uma fase rica do cinema americano após o declínio do império dos grandes estúdios, quando surgiram obras independentes e com uma visão muito ácida do american way of life (Sem Destino, de Fonda e Hooper, Cada um Vive Como Quer, de Bob Rafelson, etc). A partir dos meados da década de 70, Hollywood, em crise profunda (mas uma crise que oferecia oportunidade para criações mais independentes e criativas, antes que independente se tornasse, como agora, apenas uma marca), foi salva por Spielberg, que, com sua varinha mágica, em Tubarão (Jaws), e seguintes, fez retornar o grande público ao cinema.


Outro salvador da indústria cinematográfica, Georges Lucas, que, com suas guerras estelares, estabeleceu um novo alento para os espetáculos hollywoodianos. Mas se, por um lado, Lucas instituiu a febre dos efeitos especiais, salvando a indústria, por outro, ele e Spielberg também são responsáveis pela infantilização temática que predomina no cinema contemporâneo.

O problema reside na influência que exerceram nos executivos, que estabeleceram um padrão de pasteurização para os filmes oriundos da indústria cultural hollywoodiana. Se Lucas, como realizador, é péssimo, o mesmo não pode se dizer de Spielberg, que tem alguns filmes notáveis. Mas obras mais independentes como Terra de Ninguém e Cada um Vive Como Quer foram saindo do mapa.

Terra de ninguém projeta Sissy Spacek (que anos depois viria a ter impressionante desempenho em Carrie, a Estranha, de Brian DePalma, e, logo depois, ganhou um Oscar por O destino Mudou sua Vida), e, também, Martin Sheen (que viraria um astro após o atormentado personagem de Apocalypse now, de Coppola).

Órfã de mãe, a solitária Holly (Spacek) vive com o pai (Warren Oates) numa cidadezinha do interior americano. Sua solidão, porém, de repente, desaparece, quando conhece, por acaso, um lixeiro, Kit (Martin Shenn), enamorando-se dele. Quando o pai dela tenta impedi-la de fugir com ele, Kit o mata e, depois de forjar um suicídio, incendeia o barracão. Os dois passam a viver na floresta, subsistindo por meio de roubos e assassinatos para escapar de seus perseguidores. O relacionamento do casal, no entanto, no itinerário da fuga, vai se deteriorando. O diretor se baseou em recortes de jornais que abordavam fatos reais ocorridos em Kansas em 1958.

Malick mostra com vigor personalidades doentias decorrentes do meio social asfixiante em que vivem. Retrato de recônditos habitacionais dos Estados Unidos, onde o viver não oferece perspectivas, mas, também, uma reflexão sobre a necessidade do amor em meio à solidão, Terra de Ninguém possui uma estrutura narrativa plena de momentos fortes nos quais a câmara de Malick integra, com singular propriedade, o homem à paisagem. Seus planos gerais, principalmente os do deserto, são verdadeiros quadros pictóricos. Neste particular, alguns créditos são devidos à captação da luz do fotográfo Tak Fujimoto.

Não é uma obra-prima, com alguns quiseram ver, mas um esboço de uma obra-prima, que seria Cinzas no paraíso. Mas um filme obrigatório de se ver.

Dias de Paraíso



DIAS DE PARAÍSO (Days of heaven, 1978), de Terrence Malick, com Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz.

ANDRÉ SETARO (exclusivo para a Casa de Cinema)

Dias de Paraíso (Days of heaven, 1978), de Terrence Malick, que foi lançado comercialmente nos cinemas com o título de Cinzas no Paraíso, é o segundo filme do diretor, e considerado a sua obra-prima, realizado cinco anos depois de Terra de ninguém (Badlands, 1973), sua fita de estréia – cujo comentário se encontra postado aqui no blog. Obra de rara beleza, com paisagens deslumbrantes em planos gerais que se assemelham a quadros pictóricos, tem uma narrativa cujo registro é evocativo (a narradora é a irmã do personagem principal, Richard Gere, uma adolescente de 16 anos).

Malick se caracteriza por uma narrativa elíptica, que, com isso, evita a emergência do sentimentalismo, sempre o seu desenrolar com um tom seco, cortante, a provocar, no máximo, emoções mudas. Days of Heaven é um filme sobre a esperança e a alegria de viver que foram reprimidas no coração daquela que narra. E a impressão que deixa é a de que, pelo tom evocativo, o que ela narra é um pretérito que já se desmanchou no seu presente, deixando, porém, as suas marcas. É uma história, portanto, de uma busca pela colocação no mundo. Findos os dias de paraíso, o que resta é a amargura, a falta de perspectiva, e o futuro desconhecido.

Com um cenário de infortúnios quase bíblicos: praga de gafanhotos, assassinatos, Days of Heaven é uma obra singular dentro do panorama do cinema americano da década de 70. Poucas vezes um realizador captou tão bem a paisagem do Texas, com a imensidão de seus espaços, os seus trigais. Cada enquadramento de Malick se assemelha, como disse, a uma pintura, tal a disposição dos homens e dos objetos no quadro.

O cineasta é também um detalhista pela procura em dar densidade à ambientação, quer no exterior (os planos de detalhes dos gafanhotos, dos diversos animais que habitam a paisagem), quer no interior (os objetos da casa, dispostos no enquadramento como uma espécie de natureza morta – uma jarra com uma bebida vermelha e dois copos numa bandeja, etc). Mas o filme não teria a sua beleza tão pungente não fossem os diretores de fotografia Nestor Almendros (cubano que depois desse filme se firmaria como um dos melhores iluminadores do cinema) e Haskell Wexler (que teve sua participação diminuída por questões de briga com o estúdio, mas iluminou metade do filme), dois artistas da luz, que se preocuparam em registrar quase todos os planos ou ao amanhecer ou ao anoitecer, com o objetivo de dar ao filme uma coloração de fogo. A partitura musical de Ennio Morricone é outro ponto alto com uma trilha que produz a sensação de saudade, de melancolia.

A ação transcorre durante os anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Richard Gere (em um dos seus primeiros papéis – virou celebridade quatro anos depois em A Força do Festino, de Taylor Hackford) vive perambulando à procura de emprego com sua amante (Brooke Adams), e sua irmã adolescente (a excelente Linda Manz). Empregado como foguista em Chicago, tem um desentendimento com seu chefe e o mata. Resta-lhe fugir, ir para o Texas, onde se emprega numa plantação de trigo em época de colheita, cujo proprietário (Sam Shepard, ainda bem jovem, dramaturgo famoso, que se casou com Jessica Lange) se apaixona pela sua mulher.

Vindo a saber que o fazendeiro tem apenas um ano de vida, convence a companheira a se casar com ele para, depois, herdar o seu dinheiro. Mas não estava nos planos deles que ela viesse a se apaixonar pelo marido. A praga de gafanhotos é como uma premonição do desastre que se avizinha, com os realinhamentos emocionais que se refletem na personalidade da narradora.

Roger Ebert, famoso crítico americano, observou: “Cinzas no Paraíso é, antes de qualquer coisa, um dos mais belos filmes jamais realizados. A proposta de Malick não é contar um melodrama, mas uma história sobre esforços inúteis. Seu tom é elegíaco. Ele evoca a solidão e a beleza das ilimitadas pradarias texanas. Na primeira hora do filme, há raríssimas cenas interiores. Os trabalhadores rurais acampam sob as estrelas e trabalham no campo. O filme coloca os humanos num quadro cheio de detalhes naturais: o céu, rios, campos, cavalos, faisões, coelhos.”

A ver obrigatoriamente.