Wednesday, January 31, 2007

A Sangue Frio



A Sangue Frio (In Cold Blood,1967. Dir.: Richard Brooks; Com: Robert Blake, Scott Wilson)

Por Henrique Wagner

Quem não leu o revolucionário romance-reportagem de Truman Capote In Cold Blood (A Sangue Frio, editado no Brasil pela Cia. das Letras), publicado em 1966, assistindo ao filme dirigido por Richard Brooks (que realizou Gata em Teto de Zinco Quente) terá a mesma impressão de quem o leu: translúcido susto e uma estranha sensação de insegurança em sua própria casa, mesmo com o sol a pino, além de uma fração mínima de piedade pelos assassinos, ainda que realmente culpados.


O filme obedece à risca a narrativa de Capote, que também se notabilizou por seus roteiros para Hollywood. Contemplativa como a extensa paisagem rural do sul dos Estados Unidos, a narrativa começa linear, até bifurcar-se pelos depoimentos dos acusados: dois egressos de uma mesma penitenciária, um por furto, outro por assassinato.


Perry Smith (Robert Blake) não sabe muito o que fazer com a liberdade que a condicional lhe concedera. Mas trata-se de um jovem atormentado, com evidente fragilidade mental e protuberante infância descontinuada precocemente. Seu sonho é virar uma estrela da música no México.


No entanto, encontra – ou é encontrado – no caminho um “amigo” de cela, Dick Hickock (Scott Wilson) que tem um “plano perfeito” para embolsarem juntos 10 mil dólares. O plano: assaltar a casa de uma pacata família de fazendeiros em Holcomb, uma cidadezinha de 270 habitantes, no Kansas. Perry aceita a proposta, desde que Dick o acompanhe até o México. Dick aceita, porque seu sonho é mais concreto e imediato, encontra-se a alguns quilômetros de onde estão, e pode ser realizado por muito pouco, dado que já são criminosos, não teriam dificuldades morais estorvando o plano. Além do mais, que motivo Dick teria para ser um homem de palavra?


O leito de motivo da história, real, muito bem contada por Capote e “revelada” por Richard Brooks, está na violência gratuita: a família é assassinada – são quatro pessoas, sendo dois adolescentes – com “requintes de crueldade” em troca de um binóculo, um rádio e 43 dólares, exatamente o que acharam, e pronto.


A saída para a questão está na construção psicológica das personagens, incrivelmente ricas em detalhes, escaninhos e desdobramentos. Perfeita combinação do yin e yang, Perry e Dick formam uma excelente dupla de fracassados, decifrada pela argúcia e transgressão de Capote, e pela lente realista de Brooks.


Scott Wilson, na pele do cruel, cínico e temerário Dick, nos faz pensar na excelência dos antigos vilões norte-americanos, como Robert Mitchum e Richard Widmark. Há que se aproveitar ainda da belíssima trilha sonora, conduzida com grande inspiração pelo sempre genial Quincy Jones – reparem nas harmonias para baixo acústico.


A Sangue Frio, de Truman Capote e Richard Brooks, é um pioneiro na realização de um documentário policialesco com profunda psicologia, tão genial, que nos faz pensar o tempo todo tratar-se de ficção. Sabendo ser real a história, nos deixamos ser bem enganados pela arte.


Melhor assim.

Amargo Pesadelo



Amargo Pesadelo


(Deliverance; 1972. Dir.: John Boorman;Com: John Voight e Burt Reynolds)

Por Henrique Wagner


O rio Cahulawassee, nos montes Apalaches, desce violentamente por entre, sobre e ao largo de suas rochas. Solto, livre, é uma espécie de cobra muito arisca e saliente. No entanto, como Deus não deu asa a cobra, o rio Cahulawassee será reprimido: seu futuro é o de uma represa, ele será, no máximo, um lago, a serviço do homem citadino.

John Boorman (que dirigiu Esperança e Glória, entre outros) decide colocar quatro homens da cidade, pais de família, dentro desse rio. O líder é o entusiasta e aventureiro Lewis Medlook (Burt Reynolds), que teve a “grande idéia” de se despedir do famoso rio convidando três amigos a descerem-no de canoa, dois em cada embarcação. Com exceção de Lewis, todos são inexperientes no assunto.

A história decorre dessas águas. O filme é tortuoso e regular, ao mesmo tempo, mas sobretudo vertiginoso. A vertigem tem a medida exata tanto da imperícia de três dos quatro homens quanto da sede de liberdade do rio, espécie de canto do cisne, sua última oportunidade de mostrar-se inteiro, pronto, vivo, disposto a permanecer.

Em uma pequena sucessão de tragédias o dia vai finalizando suas atividades alheio aos acontecimentos. Salta do filme essa altivez ou indiferença do céu, muito azul, das rochas, solenes e inflexíveis, da água seguindo seu curso em direção ao conforto.

Lentamente sufocante, o filme de Boorman cria uma forte simbologia, uma inversão de valores: de repente os tais homens da cidade, ordeiros e pacatos, são levados a praticar atos comuns entre selvagens, numa relação negativa à civilização instituída. A trilha sonora reitera a metáfora, uma vez que é construída, a princípio em som direto, a partir de um dueto entre o violão de Drew (Ronny Cox), integrante da trupe, e o banjo de um garoto da região.

Jon Voight (que teve antológicas atuações em Campeão, Perdidos na Noite, entre outros) e Ned Beatty – que está excelente em um personagem absolutamente castrado pela vida em sociedade – completam o elenco desse que é um filme atual, e, me parece, sempre será, enquanto ainda existirmos.

É interessante fazer um paralelo entre o filme de Boorman e dois outros realizados posteriormente: Short Cuts e Sobre Meninos e Lobos.