Tuesday, August 05, 2008

Free Zone






Free Zone - (Free Zone). Direção: Amos Gitai (mesmo de Kedma). Com: Natalie Portman






Folha de São Paulo, 20 de janeiro de 2006

Israelense usa o cinema para ultrapassar fronteiras

CÁSSIO STARLING CARLOS

Através dos vidros de uma picape vê-se o espaço passar. De repente, a ele se sobrepõe o tempo, um fragmento da memória que se impõe ali sem a ruptura incômoda do flashback. O assombro de tal experiência é uma das tantas que Amos Gitaï oferece neste "Free Zone", filme que completa o tríptico do cineasta israelense sobre a vida contemporânea no barril de pólvora do Oriente Médio -os anteriores foram "Alila" e "Terra Prometida".


O formato é o de um road movie, mas não daquele tipo existencialista que predominou desde que muitos cineastas começaram a ler Kerouac. Dele, Gitaï preserva a forma aberta, o que levou alguns críticos a receberem mal o filme, acusando-o de ter sido feito às pressas e sem um roteiro bem-acabado. Ora, parece que é daí que decorre sua riqueza, pois, ao se lançar na estrada, Gitaï consegue resolver o desafio que se propõe de início: filmar politicamente uma geografia humana.

Não se trata da geografia dos mapas ou daquela embutida na geopolítica, mas de um conhecimento dos territórios que só se alcança à medida que o filme os percorre. Ao fazê-lo, Gitaï alcança uma outra política, não a dos chefes de Estado em disputa, mas a dos indivíduos que vivem e convivem naquele espaço.Para isso, "Free Zone" reúne numa picape três mulheres.

Uma americana, cujo casamento chegou ao fim, sua motorista israelense, que precisa recuperar o dinheiro que devem a seu marido, e uma palestina, em fuga após ter suas terras atacadas.Desde o primeiro plano, a progressiva abertura com que Gitaï trabalha a forma serve de chave para o espectador, numa longa cena sem cortes em close de Natalie Portman (Rebecca) diante da janela da picape. Fora, o Muro das Lamentações é visto apenas num reflexo nos vidros do automóvel. Dentro, mais ainda não visível, encontra-se a motorista, Hanna.

A imagem se completa com o som, em que uma canção folclórica canta uma ladainha feita de causas e efeitos, espécie de ciclo sem fim das opressões.Antes de alcançar a zona franca, o filme, seus personagens e o espectador são levados por uma travessia que faz as vezes de conhecimento. Gitaï adota um dispositivo caro uma vez a Rossellini (em "Viagem à Itália") e, depois, a Kiarostami (em particular em "Dez"): o carro atravessa um espaço e dá a ver, de modo nunca visto, uma paisagem, com suas diferenças de perspectivas, de sonoridades, de cores e de planos, de tipos e de conflitos.

No lugar das imagens poluídas pela violência, que a CNN e a Fox News despejam diariamente à nossa frente, um outro modo de ver, alcançado pelo cinema, que olha e contempla subjetivamente em vez de apenas querer mostrar com fúria objetiva.Com sua extensa experiência em documentários, Gitaï utiliza aqui sua técnica para fazer a ficção funcionar politicamente. Sem imposição retórica e com sobreposição exata de factual e de alegórico, o diretor israelense atravessa ileso todo o campo minado do Oriente Médio para instalar o seu significado.

Cotação: Ótimo

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