Friday, August 08, 2008

Desejo e Reparação

Desejo e Reparação (2007) Dir: Joe Wright. Com: Keira Knightley.

Folha de São Paulo, 10 de janeiro de 2008


Diretor usa formas clássicas para fazer cinemão dos bons

CÁSSIO STARLING CARLOS



Cinemão (tal como teatrão) é um termo que se usa, com intenção quase sempre pejorativa, para designar obras que recorrem a todo o arsenal de formas clássicas de representação com o objetivo de agradar o maior número possível de pessoas. Filmes que ganham Oscar, por exemplo, quase sempre são cinemão.

"Desejo e Reparação" é cinemão e deve fazer um arrastão no Globo de Ouro e no Oscar. Mas, neste caso, todo o repertório clássico convocado pelo diretor Joe Wright em seu segundo longa não se esgota na necessidade de agradar um gigantesco público. Do mesmo modo que Ian McEwan dialoga com princípios fundamentais da narrativa em "Reparação", romance que deu origem ao filme, o diretor consegue estabelecer com a imagem clássica e, sobretudo, com a ordem em que elas se mostram ao espectador um jogo que traz à tona uma questão crucial a ambos relatos: o que distingue fato e ponto de vista na história literária? O que distingue imagem e imaginação na narrativa cinematográfica?

Todo relato conta uma história, como se convencionou. Seus sentidos, porém, podem variar radicalmente conforme quem a narra e como. McEwan propõe essa indagação ao retomar temas de Jane Austen e Henry James sem fazer pastiche de autores clássicos. E o filme consegue estabelecer o mesmo diálogo com o cinema britânico, reencontrando alturas de Michael Powell e David Lean, sem para isso se reduzir ao decorativo, como muito se viu nos filmes de James Ivory. Muita gente vai achar o filme uma obra ultrapassada, mero cinemão. Que seja. Mas, ao lado de "A Espiã", de Paul Verhoeven, que também estréia amanhã, há muito tempo não se via cinemão tão espetacular.

Cotação : Ótimo

Thursday, August 07, 2008

Fabricando Tom Zé







Fabricando Tom Zé (2007). Dir: Décio Matos Jr.









Folha de São Paulo, 13 de julho de 2007


José Geraldo Couto


"Fabricando Tom Zé", apesar do gerúndio, é um bom título, pois o documentário de Decio Matos Jr., em vez de nos dar um retrato acabado de seu personagem, busca captar seu processo de construção. Não apenas da construção de sua arte, mas da construção do próprio artista.



O grande trunfo do filme é o de ter acompanhado de perto -talvez fosse melhor dizer "de dentro"- uma turnê de Tom Zé pela Europa em 2005, registrando no calor da hora os bastidores, ensaios, expectativas, reações, além de trechos dos shows propriamente ditos.



As relações entre Tom Zé e os locais em que se apresenta -Paris, Roma, Turim, Montreaux- são uma mescla de fascínio e espanto recíprocos. Não é um triunfo contínuo e tranqüilo. Há momentos de profunda incompreensão (como a sonora vaia em Vennes), quando não do atrito mais violento (como em Montreux, onde o artista literalmente peita um engenheiro de som suíço aos gritos de "Vá pra porra!").



Intercalados ao registro da excursão européia, depoimentos de músicos, amigos e estudiosos procuram dar conta da complexidade desse criador singular e da sua problemática inserção na chamada linha evolutiva da MPB. Emerge dessa busca um Tom Zé cheio de arestas e paradoxos: o mais sofisticado e ao mesmo tempo mais rústico dos nossos compositores populares, o mais doce e o mais intratável, o mais universal e o mais preso à sua aldeia ("No fundo ele nunca saiu de Irará", diz Neusa Martins, sua mulher e empresária).



A infância no interior da Bahia, a formação musical com Joachin Kollreuter e Walter Smetak, a adoção de São Paulo, a associação com os tropicalistas, o ostracismo, o renascimento pelas mãos de David Byrne, o reconhecimento tardio, as experiências que nunca terminam, está tudo no filme. (Ou quase: faltou falar da interlocução com Rogério Duprat.)



Documentário admirável, em suma, que não sufoca seu retratado sob o peso da homenagem, mas, ao contrário, colhe-o no contrapé, como uma contradição andante, "com defeito de fabricação" (título de um CD seu), com alguns parafusos a menos ou a mais.



Cotação: Bom

Tuesday, August 05, 2008

Free Zone






Free Zone - (Free Zone). Direção: Amos Gitai (mesmo de Kedma). Com: Natalie Portman






Folha de São Paulo, 20 de janeiro de 2006

Israelense usa o cinema para ultrapassar fronteiras

CÁSSIO STARLING CARLOS

Através dos vidros de uma picape vê-se o espaço passar. De repente, a ele se sobrepõe o tempo, um fragmento da memória que se impõe ali sem a ruptura incômoda do flashback. O assombro de tal experiência é uma das tantas que Amos Gitaï oferece neste "Free Zone", filme que completa o tríptico do cineasta israelense sobre a vida contemporânea no barril de pólvora do Oriente Médio -os anteriores foram "Alila" e "Terra Prometida".


O formato é o de um road movie, mas não daquele tipo existencialista que predominou desde que muitos cineastas começaram a ler Kerouac. Dele, Gitaï preserva a forma aberta, o que levou alguns críticos a receberem mal o filme, acusando-o de ter sido feito às pressas e sem um roteiro bem-acabado. Ora, parece que é daí que decorre sua riqueza, pois, ao se lançar na estrada, Gitaï consegue resolver o desafio que se propõe de início: filmar politicamente uma geografia humana.

Não se trata da geografia dos mapas ou daquela embutida na geopolítica, mas de um conhecimento dos territórios que só se alcança à medida que o filme os percorre. Ao fazê-lo, Gitaï alcança uma outra política, não a dos chefes de Estado em disputa, mas a dos indivíduos que vivem e convivem naquele espaço.Para isso, "Free Zone" reúne numa picape três mulheres.

Uma americana, cujo casamento chegou ao fim, sua motorista israelense, que precisa recuperar o dinheiro que devem a seu marido, e uma palestina, em fuga após ter suas terras atacadas.Desde o primeiro plano, a progressiva abertura com que Gitaï trabalha a forma serve de chave para o espectador, numa longa cena sem cortes em close de Natalie Portman (Rebecca) diante da janela da picape. Fora, o Muro das Lamentações é visto apenas num reflexo nos vidros do automóvel. Dentro, mais ainda não visível, encontra-se a motorista, Hanna.

A imagem se completa com o som, em que uma canção folclórica canta uma ladainha feita de causas e efeitos, espécie de ciclo sem fim das opressões.Antes de alcançar a zona franca, o filme, seus personagens e o espectador são levados por uma travessia que faz as vezes de conhecimento. Gitaï adota um dispositivo caro uma vez a Rossellini (em "Viagem à Itália") e, depois, a Kiarostami (em particular em "Dez"): o carro atravessa um espaço e dá a ver, de modo nunca visto, uma paisagem, com suas diferenças de perspectivas, de sonoridades, de cores e de planos, de tipos e de conflitos.

No lugar das imagens poluídas pela violência, que a CNN e a Fox News despejam diariamente à nossa frente, um outro modo de ver, alcançado pelo cinema, que olha e contempla subjetivamente em vez de apenas querer mostrar com fúria objetiva.Com sua extensa experiência em documentários, Gitaï utiliza aqui sua técnica para fazer a ficção funcionar politicamente. Sem imposição retórica e com sobreposição exata de factual e de alegórico, o diretor israelense atravessa ileso todo o campo minado do Oriente Médio para instalar o seu significado.

Cotação: Ótimo