Friday, October 31, 2008

As Leis de Família (Argentina)


Derecho de Familia (2006). Dir: Daniel Burman. Com: Daniel Hendler, Julieta Diaz

Folha de São Paulo, 3 de agosto de 2007

Burman faz belo estudo dos papéis sociais


CÁSSIO STARLING CARLOS



CRÍTICO DA FOLHA



Não é apenas com grandes filmes que diretores constroem obras sólidas. Alguns optam por um cinema "menor", sem altos vôos estilísticos ou temáticos, para afirmar um ponto de vista singular, uma poesia em pequena escala -e nem por isso menos relevante. O caso do argentino Daniel Burman é característico dessa escolha.

Desde seu segundo longa, "Esperando o Messias", feito em 2000, ele se afirmou como um dos talentos do novo cinema argentino que invadiu o mundo e chamou o interesse de crítica e público. "Todas as Aeromoças Vão para o Céu" e, sobretudo, "O Abraço Partido", seus trabalhos seguintes, vieram confirmar uma opção pelo detalhe e um gosto pela crônica cotidiana, sempre marcados pelo humor judaico.

Com "Leis de Família", Burman reitera seu vocabulário e ao mesmo tempo busca encontrar saídas para não ser identificado como um cineasta que faz sempre o mesmo filme. Em seu novo longa, Burman recorre mais uma vez ao fiel Daniel Hendler, uma espécie de alter ego do diretor. Hendler vive Ariel Perelman, um professor de direito também filho de um advogado, com o qual mantém um relacionamento ao mesmo tempo afetuoso e conflitante.

A família é o tema recorrente dos filmes de Burman, que persegue seus meandros como um moralista, tentando enxergar o descompasso entre impulsos individuais e funções sociais pré-determinadas. A presença recorrente de Hendler aproxima os filmes de Burman do ciclo Antoine Doinel, em que Truffaut seguia as mutações existenciais do personagem de Jean Pierre Léaud, da infância à idade adulta.

Só que, em vez de repetir o foco nas relações amorosas, Burman as desloca para o campo dos papéis sociais. Em "Leis de Família", esse interesse se renova na sobreposição de lugares de seu protagonista, ao mesmo tempo filho e pai, que se vê obrigado a tolerar as divergências fora de casa e a reproduzir funções familiares dentro de casa. Nessa ambigüidade, o que Burman consegue representar com vivacidade é o descompasso entre as leis e os fatos, entre a determinação e o livre-arbítrio, do qual ninguém se encontra a salvo.

Avaliação : ótimo

O Sobrevivente


Rescue Dawn (2006) Dir: Werner Herzog. Com: Christian Bale.

Folha de São Paulo, 7 de dezembro de 2007

Distante do seu melhor, diretor faz cinema íntegro

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

As duas horas de "O Sobrevivente" podem ser divididas em duas partes quase idênticas. Na primeira, o tenente Dieter Ziegler, piloto da Marinha dos EUA no Vietnã, é designado para missão no Laos. Estamos em 1965, a guerra no Vietnã ainda não tem a extensão que iria adquirir, e a missão de bombardear alvos estratégicos no Laos é absolutamente confidencial.

Ziegler tem o avião derrubado, é feito prisioneiro pelos vietcongues, dos quais consegue escapar pela selva. Não há muito segredo sobre o fim deste filme: sendo baseado na autobiografia de Ziegler, é evidente que ele consegue escapar. A questão não é essa, e sim: como? Werner Herzog, que se notabilizou como um dos mais importantes cineastas alemães dos anos 60 e 70, ultimamente tem se destacado como documentarista.

E o documentário, como se sabe, exige menos de um cineasta do que a ficção: é questão apenas de saber deixar o mundo vir a si. Não é tão simples quanto parece, mas é mais fácil do que ir ao encontro do mundo, transformá-lo e torná-lo digno de crédito. Em "O Sobrevivente", a primeira metade é apenas sofrível. Não pela modéstia dos efeitos especiais. É que Herzog não parece se interessar pelos aspectos que precedem a fuga: o encontro com outros prisioneiros, as violências a que são submetidos, a permanente ameaça de morte e a maneira como, aos poucos, Ziegler se impõe como líder aos colegas e comanda os planos de fuga.

A segunda metade é de outra ordem. É questão de dois homens -Ziegler (Christian Bale) e seu colega Duane (Steve Zahn)- e uma selva. A selva e suas adversidades. A natureza com a qual esses homens se defrontam a cada instante para sobreviver, até que, por fim, possamos observar talvez o melhor do filme: a transformação de Ziegler em um homem-natureza -uma espécie de identificação completa, na maneira de se ocultar, se alimentar, se proteger dos perigos.

Nesses momentos, parece que estamos de novo diante do Herzog dos velhos tempos, embora num mundo diferente: em que o controle sobre a produção parece relativo, em que sofre com a iluminação óbvia e mesmo com a necessidade de seguir um roteiro nem sempre favorável. Enfrentando (em selvas da Tailândia) adversidades, Herzog não cede a tentações a que raramente escapam os cineastas, como o sentimentalismo. "O Sobrevivente" não será nunca seu melhor filme, mas é de uma integridade formidável.

Avaliação: Bom